terça-feira, 25 de agosto de 2009

O Sertão cor de Rosa

Clederson Montenegro - Astrólogo






Quando os alemães conheceram Grande Sertão: Veredas e souberam que aquele mundo existia de fato, tiveram um impacto. Estavam convencidos de que o sertão era uma criação do autor mineiro João Guimarães Rosa, que aquilo só era mesmo possível existir dentro dos liames da fantasia de um escritor. Mas em certa medida, Rosa inventou o sertão sim, poetizou as áridas terras, coloriu jagunços, mistificou e deixou lírica a linguagem bruta dos homens do sertão. Concebeu um outro ou intuiu este sertão que os olhos comuns e cansados não conseguem mais perceber. É que Rosa enxerga ainda com os olhos primeiros, os olhos de quem está vendo tudo pela primeira vez, quando se pode ser lúdico. As primeiras palavras do mundo não eram somente palavras.

Mas onde estaria o planeta Mercúrio, o que simboliza a comunicação na Astrologia, quando nascia João, e o que nos diria desse seu impulso de se expressar por meio da palavra?

Nasceu com um Mercúrio em Câncer, entre o inspirado e escapista Netuno e a artística Vênus (a deusa do afeto, do amor, da delicadeza), em 27 de junho de 1.908, às 06h, em Cordisburgo, Minas Gerais. A conjunção dos três astros no mapa do escritor é retrato do discurso afetuoso, poético e sedutor: um projeto de descoberta da linguagem, com resultado estético. A palavra impregnada de beleza, suave, que sai da fala dos sertanejos, parece-nos mais um som, a música da linguagem que alcança o seu apogeu. Ecos de um mundo que se supõe moribundo reaparece com as cores que só Rosa pintou na Literatura.

Mercúrio em Câncer vai buscar inspiração na memória, no passado, no registro das primeiras palavras, sem os vícios da linguagem comum, sofrida nos desgastes do dia-a-dia. É nesse reino, só nele, que a palavra em João esta segura, só naquilo que lhe é familiar. Portanto, é o resgate do significado primordial da palavra que ele alcança. E sua expressão tenta recuperar aquela memória afetiva que esta sempre nos mordendo - certamente Rosa não era muito falante nem verborrágico como Riobaldo, o herói de sua obra máxima "Grande Sertão: Veredas", mas devia registrar e guardar as experiências no seu baú emocional (Câncer). Só falava ao se sentir seguro, fora isso, ele preferia o silêncio e arquivava cada som, cada palavra. Eram as impressões e a carga subjetiva que realmente lhe interessavam.

Câncer astrologicamente representa a família, a intimidade, o arquivo emocional de um indivíduo. Mercúrio no universo canceriano vai querer fazer disso um discurso. A sua linguagem é tão emocional que é caótica (Mercúrio retrógrado) - porque nos nossos registros afetivos, as coisas ainda não estão pensadas, só sentidas - e é só o pensamento que é capaz de ordenar, separar e traduzir. A tentativa, no entanto, do mineiro autor era por uma ordem nesse enovelado de impressões alógicas, e recriar uma realidade, mimese de uma outra descolorida. Comunicar para encontrar uma ordem no caos emocional, já que Mercúrio em Câncer está inquietamente acomodado na natureza tão mágica do primeiro signo de água, regido por um luminar, a lua.

A tentativa de compreender era com muita dificuldade, porque a palavra nele era um emaranhado de perguntas, que em Riobaldo se desenrolavam devagar, mediatas. Se estivesse em Gêmeos, Mercúrio se comunicaria com facilidade e rapidamente, encontrando uma ordem no que diz. Não tinha Rosa Mercúrio em Gêmeos, que é de entendimento rápido, ágil e abraça as realidades mais díspares, dando sempre a uma pergunta duas respostas. Nem o Mercúrio em Leão, que explicita, mostra e exibe a linguagem. Em Câncer, ele quer compreender lá por dentro, entender a natureza íntima das coisas, sensibilizar através da linguagem. Eis o seu projeto literário.

Câncer é regido pela Lua, símbolo do sonho, o inconsciente, o conto de fadas. E parece que é assim que Rosa se expressa em Riobaldo, que conta um causo de seu passado, um registro de sua memória. O seu sertão, que só conhecemos pela sua palavra, parece-nos mais um mundo de sonhos. O seu sertão nos é quase irreal. Fábula de alguém cujo dominante é lunar, Guimarães consegue dar atmosfera de conto de fadas a uma realidade povoada de pedras e terras ressecadas. O seu Sertão é encantado. E o que é o seu sertão se não uma linguagem de saber do mundo?

Mercúrio em signo de água é a palavra que flui, nem sempre com coerência (Mercúrio em signo de Terra), nem buscando entender o mundo pelos processos racionais (o que se veria em um signo de Ar), antes quer compreender por vias oblíquas, e muito menos é auto-suficiente (como seria em um signo de Fogo). A palavra simplesmente nos é "revelada" em sua carga de emoção e carrega todas as qualidades do elemento água: é sensível, fluente. Riobaldo - esse arquétipo da Lua - é o herói que conta a sua travessia, ou melhor, escorre e transborda a sua travessia pelos sertões mineiros, até as margens do rio São Francisco. Teria mesmo ocorrido tudo aquilo ou teria o lunar Riobaldo inventado uma narrativa de três dias para acalentar as noites e a solidão de uma terra deslocada no espaço? Seria tudo mesmo uma fantástica ficção da imaginação desse ex-jagunço?

A oposição entre Mercúrio e Urano é outro aspecto que merece relevo no mapa de Guimarães Rosa. Uma oposição é sempre uma tensão, um grito de insatisfação. Urano é o mais excêntrico dos arquétipos astrológicos. Ele rompe com Gaia (a Terra), ao ser castrado por Chronos. Todo planeta que Urano "toca" ganha essa necessidade de romper com o padrão estabelecido, convencional. Insatisfeito com a maneira de abordar e expressar a língua, Rosa elege caminhos não lineares, sinuosos. Rompendo, porque o modelo não mais serve, ele experimenta o retorno ao primeiro modelo (Câncer).

Câncer está simbolicamente associado com a época da fecundação e fertilização. A mente (Mercúrio) roseana abunda em anseios fecundos de uma auto-invenção nessa travessia de Riobaldo. Ele inventa, recria, tentando buscar um modelo ideal, que corresponda ao que no fundo pretendia: experimentar a língua a fim de encontrar a alquimia original que germina em sua casca, antes de ser palavra. Matéria apenas cheia de elementos tão próximos que se pode dizer linguagem em feto. É como se houvessem duas opções: "ou eu invento isso aqui ou eu me retiro de uma vez", e se aventura então nessa inalcançável perseguição épica de significados - é claro que pessoalmente isso deve ter sido um movimento de tensão, e não de harmonia. Entende-se porque a maioria dos leitores estranha tanto João.

O que ele queria alcançar lhe resultou em algo imprevisto. A palavra vai se despir de toda afetação solar, pois ele queria uma revolução lingüística, que abarcasse em cada palavra o todo do Céu infinito, ilimitado em seu poder criativo. Aquele discurso encerrava o mundo todo, mais que isso até, a cosmovisão desse mesmo mundo, intraduzível em palavras, afinal "A vida não é entendível" dirá Riobaldo.

A sua linguagem tem a marca da originalidade de uma expressão (Mercúrio) inconformada (Urano). A linguagem se revolta num esforço de encontrar um significado último que a ampare. Pode-se dizer, sob a ótica da Astrologia, que esse esforço lhe foi malogrado, ele não só não encontra, mas continua tentando, porque lhe era um Ideal.

E, por fim, o que dizer da conjunção de Mercúrio com Netuno? Falar é fugir do real-sensível, é um mergulho no reino da fantasia, da criação. A palavra, a razão (Mercúrio) desacostumada a adentrar no reino da fantasia (Netuno) emerge colorida, em êxtase, inspirada. Mas não se engane, que o véu não será descortinado, já que a conjunção não é com o Sol: vela mais que revela. Impressiona mais do que diz. Certamente, era sempre assim que Guimarães entendia, interpretava e transmitia as coisas em sua volta. Era o universo intuído e percebido que o interessava. A linguagem era mítica - já que a realidade será um convite a uma fuga para um universo de símbolos, do imaginário, de elementos amorfos. A mente de Rosa escapou para um mundo onde o significado está naquilo que se inventa - Rosa fabrica um mundo de sonhos, coloca lentes cor-de-rosa para entender (Mercúrio) e para expressar o seu universo Sertão. Rosaceou o sertão de Riobaldo, o Rosa - diria o João.

Clederson Montenegro é astrólogo.

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